Não nasci lagartixa, pronta pra me refazer depois de alguma amputação. Não nasci pronta pra me regenerar porque não nasci preparada para cortes tão fundos. Afia a lança, arremessa e acerta bem em cheio no meu coração. Vem aqui dentro, lixa os cantos, corta um pedaço, escreve fundo do outro lado e faz o sangue escorrer. Eu não sei ser remédio pra curar nada, e o mertiolate da infância já não faz efeito. Vem e troca o coração de lugar, desativa o cérebro, manda a razão ir pastar, depois sai deixando a porta aberta e a ferida exposta. Deixa o vento gelado entrar, congelar, deixar doer e latejar. Você foi furacão, tsunami, terremoto, foi fenômeno da natureza e agora tenta não ser nada, quer me fazer esquecer. Você foi bom e agora é mal. Foi melodia e agora soa como microfonia nos ouvidos. Se encontra perto e me afasta quilômetros cada vez que finge que não vivemos nada. O meu anjo protetor se transformou no homem alto de capuz preto que me leva pra forca. Ei! Eu não nasci lagartixa, e também não nasci fênix pra renascer das minhas próprias cinzas. Não sei reconstruir o que foi destruído. E deixa eu dizer, todas as minhas certezas foram destruídas, e eu não consegui reconstruir nada. Agora eu sou o que sobrou. Sou contradição, sou passageira, sou o escuro, sou toda de incertezas, buracos, sou a falta que ninguém sente e o sentido que ninguém vê. Escrevo tentando ser profunda e no final vejo que sou o razo da água clara do rio. Não quero mais ser raza, ser sobra, ser nada, ser a sujeira que ficou depois que você passou. Quero ser inteira, ser a mesma longe de você, quero voltar a ter paz, quero ter amor sozinha, quero ser feliz. Quero me refazer, me reconstruir. Quero ser lagartixa. Quero ser fênix. Quero, e no entanto ainda nem sei como fazer pra levantar da cadeira e correr pra abrir a porta e deixar o sol entrar.